segunda-feira, 18 de maio de 2009

My lady boss



Depois de receber várias reclamações por não enviar crónicas há tanto tempo, aqui vai mais uma história da terra dos leões.
Aqueles que pensavam que eu já me tinha estampado contra um elefante ou uma girafa...desenganem-se meus amigos “I’m still here, tough and alive!”.
Ainda não atropelei ninguém, nem cometi atentados contra a fauna e flora sul-africana. O regresso a Joanesburgo, depois de umas longas férias em Portugal, obrigou o meu cérebro a ter de fazer uma ginástica mental para se adaptar de novo a esta estranha, mas excitante sensação de fazer tudo ao contrário: conduzir ao estilo britânico, sentada no lugar do morto com o cinto e as mudanças no lado oposto e fazer verdadeiras proezas nas rotundas e nas minhas quase perfeitas ultrapassagens pela direita. Ai que maravilha! Já me tinha esquecido desta adrenalina, um prazer que eu diria quase perverso, de sentir que estou a cometer verdadeiras loucuras ao volante, que em Portugal seriam consideradas infracções graves, com direito a ficar sem carta. É uma espécie de nervoso miúdinho adolescente, de quem rouba um chocolate no supermercado e sai para a rua com um ar triunfante.
Em poucos meses transformei-me num autêntico “Ayrton Senna” das estradas sul-africanas, que contrariamente ao que eu imaginava, são bem melhores do que as portuguesas.

Apesar de viver sem aquele terrível e inebriante stress de quem tem um emprego e passa o dia a trabalhar com prazos apertados para cumprir, há apenas 3 dias por semana, em que a minha cara espelha tranquilidade. São os dias em que a Mary Masoka, a nossa empregada doméstica sul-africana, vem cá a casa limpar a nossa “cottage in Africa”. O chão fica a brilhar, sem migalhas, nem formigas, nem brinquedos para tropeçar, a cozinha fica um mimo, sem o chão colado debaixo dos nossos pés e à noite vem aquela agradável sensação do lençol lavado. Que conforto! Este é um dos luxos que não posso, nem quero abdicar. Jamais! Basicamente quando alugámos esta casa, herdámos a Mary e um jardineiro chamado Alex, um rapaz zimbabueano de 30 anos “que é uma graça”, e que aparece cá uma vez por semana para arranjar o nosso jardim. Mas dele, falar-vos-ei mais tarde...

A Mary é uma espécie de “Black Mama”, com cabelo muito curto, umas ancas imponentes e um rabo saliente. Limpa impecavelmente a casa com os headphones enfiados nos ouvidos, enquanto abana o rabo e a canta músicas em sotho ( pronuncia-se sutu), uma das 11 línguas oficiais da África do Sul. Estou acostumada a vê-la de canga enrolada à volta da cintura, umas crocs nos pés e uma t-shirt colorida. Aliás, toda ela é colorida e contagia bom humor. O Tiago tem uma adoração especial pela Mary e não descansa enquanto ela não o enrola com uma toalha à volta das costas, como as africanas fazem aos bebés. Estava há poucos dias na África do Sul quando descobri esta “tara” do meu filho, que já se transformou numa verdadeira obsessão!

No meio de uma birra monumental do Tiago, em que entrei em desespero e já não sabia o que fazer para o pôr a dormir a sesta, a Mary perguntou-me se podia ajudar. Estava prestes a ter um ataque de fúria, daqueles que só quem é mãe entende (peço desculpa aos restantes), e acabei por dizer que sim, com a certeza de que seria impossível alguém que não eu, “la mamma”, conseguir pôr o Tiago a dormir. Confesso que até tive vergonha por ter causado aquela impressão de mãe inexperiente, que não consegue controlar a ansiedade e excitação do filho. Desenvolta como sempre, a Mary pegou no Tiago e enrolou o miúdo com uma toalha à volta das costas, agarrou-se ao ferro de engomar e começou entoar as suas cantilenas em sotho. O Tiago calou-se de imediato e em poucos minutos estava a dormir. Eu fiquei pasmada e aliviada por deixar de ouvir aquela gritaria e até senti ciúmes, não de ter vontade de pular para as costas da mulher, mas por sentir alguma frustração de não ter sido eu a conseguir ganhar aquela briga. A partir desse dia, trepar para as costas da Mary passou a ser uma rotina do meu filho.

Mas como vos dizia, é um descanso ter a Mary cá por casa e ver a cozinha e a casa de banho, dignas de entrarem numa revista de decoração, estilo”Country and Home”. Adoro ver os legos e pedaços de comida a desaparecerem dos cantos da sala e debaixo do sofá e, acima de tudo, adoro o cheiro a limpez!

Com um sorriso rasgado que atravessa a cara escura, e o contraste dos dentes brancos mármore, a Mary é o Eddie Murphy, em versão feminina. Anda sempre bem disposta e quando chega o Tiago vai a correr à porta para lhe dar a habitual palmadinha na mão: “Take five Jay, Jay Júnior (pequeno João, tinha de ser, não é)!” Depois olha para mim e diz “Hello my lady boss, how are you?”. A primeira vez que ouvi este nome, fiquei deslumbrada. Nunca na vida tive o privilégio de receber “um título” tão pomposo. Já me chamaram muita coisa, desde estúpida a Dra, Sra Jornalista, miúda, menina, miúdeca, parva...agora “lady boss”, é um título que está reservado só para alguns. Pois bem, eu sou um deles.

Um colega do João, que é actualmente o nosso melhor amigo em Joburg, estava um dia destes cá em casa a jantar e disse-me que a empregada dele o tratava por “Master”. Chocado e assustado com o peso que tem um título como este, pediu-lhe inúmeras vezes para não o tratar por “Master” e para o chamar pelo nome mas a Sra ficava sempre muito envergonhada e demorou algum tempo até conseguir ter a “ousadia” de o tratar pelo nome. Pelo que conseguimos perceber, estes “títulos” são heranças do Apartheid e não é fácil para muitos empregados tratarem os patrões pelo nome. Como a Mary não consegue dizer o meu nome, chama-me “Maddy, my lady boss”.

A Mary vive em Orange Farm, uma favela onde a realidade fica a planetas de distância do famoso bairro de Orange County na Califórnia, que aparece na série “OC”, onde vivem pessoas muito ricas. Orange Farm fica igualmente muito longe do nosso bairro de Parkhust, a norte de Joanesburgo. Para chegar a nossa casa, a Mary demora cerca de 3 horas e tem de apanhar o comboio, um táxi e andar vários quilómetros a pé com o filho de 4 anos às costas. Acorda às 4h30 da manhã e depois desta longa viagem, deixa o filho na escola, que fica a uns quarteirões da nossa casa.
Em Orange Farm vivem cerca de 350 mil pessoas. Os primeiros habitantes que acamparam neste pedaço de terra eram agricultores, que começaram a construir as suas casas em 1988. Apesar da escassez de água e do cenário de profunda pobreza, Orange Farm não é das piores favelas da África do Sul. Já tem algumas casas em tijolo com electricidade, uma biblioteca moderna, um centro comunitário, uma clínica e algumas algumas estradas estão alcatroadas.

O Justice, filho da Mary, é um rapazinho tímido que já se tornou no melhor amigo do Tiago. Nos dias em que a mãe trabalha, passam as tardes a brincar em casa e no jardim. Entendem-se lindamente em português, inglês e sotho e, talvez seja impressão minha, mas parece-me que o Justice entende mais “tiaguês”, do que nós.

Numa das primeiras vezes em que o João viu o Justice, apanhou o miúdo a dormir num cobertor velho no chão da nossa casa. Disse à Mary que podia pôr o filho a dormir no sofá, mas ela teve alguma resistência em aceitar. Só mais tarde percebemos que não é habitual nesta terra, os negros utilizarem os objectos dos brancos. Nomeadamente usar os nossos talheres e a nossa loiça. A Mary anda sempre com a sua malga de plástico e um púcaro de esmalte cheio de chá. Por mais que lhe diga para usar os nossos pratos e os nossos copos, apanho-a sempre na cozinha a comer com as “suas” coisas. E quando vai aquecer a comida, não usa o nosso fogão, nem o nosso micro-ondas, vai à pequena casa (acho que inda não vos tinha dito que no nosso jardim temos uma casa para os empregados) e põe-se a cozinhar no fogão do casinhoto..

É óbvio que tivemos de pôr um fim a isto. Não nos queremos armar em heroís e nenhum de nós quer mudar a cultura e costumes deste país, mas tinhamos dificuldades em aceitar este hábito, tradição ou lá o que quer que seja.... Sentimo-nos na obrigação de explicar à Mary que não concordávamos com este tipo de comportamento. Disse-lhe que respeitava as opções dela mas que me incomodava que não se sentisse em casa. Agora o Justice já dorme sestas e vê desenhos animados no nosso sofá, brinca com os brinquedos do Tiago e a Mary já come cá em casa e usa as nossa loiça quando lhe apetece.

Durante a época das chuvas, no verão, o Justice estava quase sempre doente porque sofre de bronquite e a barraca onde vive a Mary ficava constantemente inundada. Depois de uma jornada de trabalho e de uma longa viagem com o filho às costas, e com o jantar dado a bordo do táxi ou do comboio, a Mary chegava a casa e tinha de esvaziar a sua barraca ensopada de água.

Eu e o João propusemos-lhe mudar-se para a nossa cottage, depois de falarmos com o proprietário da casa - que nos assegurou que ela era uma pessoa de extrema confiança, trabalhara 8 anos em casa dele e ele inclusivé já lhe tinha feito a mesma proposta no passado, mas ela recusara. Disse-nos que tinha algumas dúvidas que ela aceitásse mas que achava que era uma excelente ideia, até porque nos daria uma certa segurança, ter alguém em casa durante as nossas viagens.

A Mary ficou radiante com a proposta e mudou-se há umas semanas para o casinhoto do jardim, que segundo nos disse tem umas condições de longe melhores que as da sua barraca de Orange Farm, onde continua a passar os fins-de-semana. O Justice nunca mais ficou doente e a nossa casa nunca esteve tão limpa e arrumada.

À medida que eu e a Mary nos fomos conhecendo melhor, fomos partilhando algumas confidências. Perguntei-lhe naturalmente onde estava o pai do Justice? Com a sua boa disposição habitual, foi-me contando pedaços da história da sua vida. Tão difícil de imaginar que seria tão trágica. Há cerca de 13 anos, a Mary ficou grávida de um menino, que acabaria por morrer com 6 meses de vida. O marido era alcoólico e num momento de desespero matou o bebé de seis meses e suicidou-se a seguir, deixando a Mary num estado do qual só muitos anos mais tarde viria a recuperar.

Durante as suas longas viagens entre a casa e o trabalho conheceu um homem, que se transformou num grande amigo. Ao longo de 5 anos, viajaram de comboio e de táxi, que para quem não sabe são carrinhas tipo toyota hyace, que transportam negros entre a cidade e as favelas. São verdadeiras bombas-relógio que circulam pela cidade a abarrotar de passageiros, e páram inesperadamente em qualquer lado. Muitas estão literalmente a cair de podre. Além da sida que neste país, ainda mata milhares de pessoas todos os anos, grande parte das mortes devem-se a acidentes com estas “traquitanas velhas”. Passaram-se 5 anos, até a Mary perceber e aceitar que estava apaixonada e pronta para ter outra relação e 6 anos depois nasceu outro rapaz, a quem ela deu o nome de Justice, por sentir que finalmente se fazia justiça depois da mágoa profunda, que a perda do primeiro filho lhe causara.

Poucos dias depois do nascimento do Justice, a Mary ligou ao marido que estava no trabalho, para lhe pedir que fosse à farmácia comprar alcóol para desinfectar o cordão umbilical do recém nascido. Lembra-se apenas que era uma sexta-feira e que foi a última vez que falaram. Até hoje não sabe o que aconteceu. Colocou anúncios nos jornais e os amigos e a família tentaram procurá-lo por toda a parte, mas sem sucesso. A polícia suspeita que tenha sido vítima de carjacking “ Não há um único dia que passe que não pense nele. Era uma pessoa maravilhosa e muito bondosa”- diz-me com as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara.
Nunca tinha visto a Mary a chorar. Abracei-a e, a partir desse dia, passou ela a ser a minha “lady boss”.

T.I.A. - Fevereiro 2009



Queridos amigos,

Depois de passar mais de uma semana sem internet volto a sentar-me à frente do computador para vos contar um pouco do que tem sido a minha vida por aqui.
Há duas semanas, levantei-me da cama a meio da noite com o barulho de uma violenta tempestade que deixou o alarme a tocar freneticamente. Atordoada com o susto, desliguei o alarme e liguei as luzes exteriores para ver se havia algum intruso no jardim.

No dia seguinte, não tinha telefone nem internet e telefonei para a Telkom - a empresa que nos fornece a linha telefónica e a internet - a pedir, por favor, que enviassem com urgência um técnico a nossa casa para arranjar a linha que tinha ficado danificada com a tempestade. Garantiram-me que enviariam alguém assim que possível. Esperei eternamente. Durante mais de uma semana, liguei-lhes várias vezes por dia e a conversa era sempre a mesma " Madam , we'll do what we can. As soon as possible, someone will come to your place".

Depois de inúmeros telefonemas e muitos dias de espera, em que aproveitei para pintar várias peças de mobiliário que comprámos para a nossa casa....perdi a paciência! Pintar móveis com uma esponja passou, aliás, a ser um dos meus novos hobbies. Qualquer "dondoca" que se preze adora pintar e há que aproveitar esta oportunidade de estar sem nada para fazer. Afinal não há nada melhor do que ter tempo e espaço para pintar e sujar aquilo que nos apetece!

Voltando à saga da Telkom....Decidi ligar mais uma vez. Desta vez muito zangada e com um tom de voz ameaçador: "Oiça lá, mas afinal que história é esta??? Não saio de casa há vários dias porque estou à espera que venha cá um técnico da vossa empresa arranjar a linha telefónica. Isto é uma falta de respeito! Todos os dias é a mesma conversa. Dizem que mandam alguém e ninguém aparece. Estou há uma semana sem telefone e internet e preciso de internet para trabalhar. O mês passado foram 3 semanas sem internet e pagámos a mensalidade na totalidade, sem um único desconto ...Por isso, agora estou a avisar-vos, ou enviam já alguém ou acabo já com o meu contrato convosco!"A Sra do outro lado ouviu-me pacientemente até ao fim e respondeu com um tom de voz calmo: " Yes Madam, we will do our best".
Pareceu-me ouvir um riso do outro lado.Furiosa liguei para o João que estava em Madagáscar a fazer uma reportagem sobre um golpe de estado que gerou muita confusão. " Estes tipos da Telkom não têm respeito nenhum. Não aparecem e não resolvem o problema da internet. Ainda por cima a fulana começou a rir-se. Achas normal??"-" Tens de ter calma, não te esqueças T. I. A (tee –ai- ei)."- "Desculpa?? não estou a perceber Tiii---Aiiii--- Eeiiii. O que é isso?"- "THIS IS AFRICA. Estou a tentar explicar-te que tens de ter calma, as coisas aqui levam o seu tempo. Além disso, a Telkom é a única companhia de telefones na África do sul , por isso nem vale a pena dizer-lhes que vais acabar o contrato com eles. A mulher riu-se porque sabe que não tens outra alternativa. Eles estão-se a lixar. Agora tenho de desligar. Falamos mais logo" T. I. A Mas que raio!
Neste micromundo de aparência europeia em que vivo actualmente, é fácil esquecermo-nos que estamos em África. Para não me irritar mais, tentei minimizar a situação e lembrar-me de como eram as coisas em Portugal há uns anos atrás quando a PT detinha o monopólio das telecomunicções e como tudo funcionava tão mal. Lembrei-me ainda da infindável e vergonhosa correspondência que troquei com a TV Cabo durante meses a fio até aparecer a Cabo visão na minha zona de residência e ter uma segunda alternativa.E também dos primeiros tempos em que vivi em Nova Iorque, de toda a papelada que precisava para conseguir qualquer tipo de contrato e de como tinha de constantemente provar que era uma pessoa de bem sem intenções terroristas. "Maybe this is as good as it gets" e tenho mesmo de aprender a esperar.

Finalmente começo a ter uma rotina. Para os que pensam que a vida de "dondoca" é uma maravilha, fiquem a saber que acordo todos os dias às 06H45 da manhã e que às 21H30 já tenho os carneirinhos contados, uma história de adormecer aviada e a música de embalar cantada. Por aqui, os dias começam muito cedo e terminam muito cedo também ( são duas horas mais tarde do que em Portugal).De manhã, arranjo o Tiago, dou-lhe o pequeno-almoço, deixo-o na escola que fica a cerca de 7 km de casa e aproveito a manhã para fazer o máximo possível. O tempo voa até ao meio-dia, hora a que tenho de estar na creche para o ir buscar. Depois almoçamos, passeamos e brincamos os dois durante a tarde. Parece-vos enfadonho? Garanto-vos que é divertido e estafante. Quem tem filhos pequenos sabe perfeitamente o que quero dizer.

Nas minhas recentes incursões pela cidade tenho tido alguns episódios caricatos com elementos da comunidade judia de Joburg. O meu primeiro encontro aconteceu há cerca de uma semana, quando decidi cortar o cabelo. Fui a um centro comercial perto de nossa casa e tentei encontrar um cabeleireiro com um aspecto discreto. Afinal só queria cortar as pontas e não queria de maneira nenhuma pôr a minha farta cabeleira nas mãos de uma mente com ideias demasiado arrojadas. Entrei na loja e uma Sra de cabelos louros com muitos caracoís ofereceu-me um chá e pediu-me para esperar um momento. Chegou um homem de 50 e poucos anos que falava inglês com um ligeiro sotaque. Perguntou-me se eu era holandesa? Disse-lhe que não mas que tinha vivido na Holanda. - "Ah eu logo vi pela sua pronúncia.Nunca diria que era portuguesa e olhe que conheço muito portugueses que vivem aqui."Achei estranho como é que aqueles anos de convívio com holandeses tinham conseguido moldar a minha pronúncia em inglês, mas pelos vistos....- "Só querio MESMO cortar as pontas." – frisei bem " Não quero o cabelo curto está bem? E gostava que me pintasse o cabelo com a minha cor natural porque o cabelo está muito claro e as raízes já estão muito escuras."- "Muito bem minha Sra. O que a Sra quiser está bem para mim.Vamos lá então." – disse o homem.
Comecei a ouvir algumas palavras em hebraico e a Sra loura que me oferecera o chá apareceu de novo e começou a pintar-me o cabelo, depois de me despejar no colo várias revistas escritas em hebraico. Fui folheando e olhando para as imagens da socialite israelita e da Angelina Jolie com o Brad Pitt.De repente o salão entrou em alvoroço. O cabeleireiro não tinha mãos a medir. Várias mulheres entraram na loja para arranjar o cabelo, pintar as sobrancelhas, fazer madeixas, etc...Comecei a olhar para o relógio, com receio que aqueles tipos se esquecem-se de mim e que a tinta derrete-se o cabelo. A última coisa que queria era sair dali careca ! Depois de algum tempo, o Sr. voltou à minha cadeira, olhou para a minha cabeça, mandou tirar a tinta e começou a cortar-me o cabelo.. - "You see…. my daughter is getting married tomorrow and all my family is here to take care of the hair"- "Ohhh I see "- respondi eu - "Congratulations for your daughter." - " Thank you. It's going to be a very nice party, with lots of people. I'm so nervous!"Não consegui deixar de tremer a perna e olhar para a tesoura quando ele disse que estava nervoso. - "Don't cut too much. Just a little bit, ok?"Minutos depois o homem solta um grito e olha para o espelho.Fiquei congelada e só pensei: "Ai Meus Deus o que é que o homem me fez ao cabelo???"- " SHALOM SHALOM " dizia ele, entre outros sons que não consigo reproduzir.Correu para a porta do salão de tesoura na mão e agarrou-se a um homem. Começou a abraçá-lo e a beijá-lo na cara e à volta várias mulheres guinchavam e soltavam ruídos em hebraico.

"Totally lost in translation." –pensei - Mas onde é que eu vim parar??"Minutos depois, e visivelmente mais calmo o homem aproxima-se da cadeira e olha-me através do espelho: "I am so sorry Madam . But you see, it's a lot of emotions for me. This is my brother" – disse, apontando para o homem a quem se abraçara minutos antes – "I didn't see him for 12 years. He came from Israel. It was a surprise you see!!! My wife and daughters organized everything. I am so happy! Do you want to come to the wedding? It's tomorrow. There will be lots of Portuguese and Italian people." Eu não estava a acreditar no que acabara de ouvir. Será que tinha percebido bem? O homem estava a convidar-me para o casamento da filha?? - "Tomorrow?? Hhh. I would love to go but unfortunately I can't make it. You see, I am away tomorrow. But thank you very much for the invitation. I am sure it will be a lovely party. I wish you and your family all the best."
Por favor tirem-me daqui rapidamente! Daqui a pouco, mandam-me para a cozinha ajudar a preparar os pratos kosher. Depois de vários "shaloms", lá me consegui escapulir do cabeleireiro.

Os meus encontros com a comunidade judia de Joburg não ficaram por aqui. No dia seguinte fui a um oculista comprar lentes de contacto descartáveis. Disseram-me que sem prescrição médica não podiam vender as lentes e que tinha de ser examinada por um optometrista da loja.Uma senhora simpática observou os meus olhos e fez-me uma série de testes.

Depois tirou os olhos do aparelhómetro para onde estava a espreitar e perguntou-me: - " A Sra é holandesa? "Mas que raio, pensei eu. Com o meu look latino, se há coisa que não pareço é holandesa. - "Não. Sou portuguesa mas vivi na Holanda."A Sra olhou para mim fixamente, riu-se e começou a falar em hebraico."Oh no. Not again!" – pensei cá para mim. - "Desculpe mas não entendo o que está a dizer.".- " Que estranho. Tenho estado a observar os seus olhos e podia jurar que é judia."- " Ah sim? Que eu saiba não "- respondi-lhe a sorrir.- "Como é que se chama?"- "You don't want to know." – disse eu a rir. Não sei se vocês sabem o que é ter 6 nomes portugueses e ter de dizer um a um quando se é estrangeiro. Tenho vontade de rogar pragas aos meus pais cada vez que tenho de soletrar cada um dos nomes e preencher formulários. MARIA MADALENA RESINA CONCEIÇÃO E SILVA AUGUSTO - " Ah Silva" – mal ela sabe que quase toda a gente que eu conheço tem alguém da família chamado Silva "Resina- é uma árvore não é ?" - "Bem , não é uma árvore. É mais uma coisa pegajosa que os pinheiros produzem"- "Ah sim, mesmo assim .. tenho quase a certeza que tem origem judia. Os seus antepassados provalmente foram judeus e a inquisição forçou-os a tornarem-se cristãos novos"- "Hm.. Talvez" - respondi- "Foi um prazer conhecê-la . Leve estas lentes. E já sabe se precisar de alguma coisa, por favor ligue-me. Eu ajuda-a e não se esqueça, não confie em ninguém." –disse ela, abraçando-me com força.

Bem como vêem, já fiz uma amiguinha que talvez ainda tente converter-me ao judaísmo para encontrar as minhas origens... Prometo continuar a dar notícias.Beijos a abraços desta bela terra.