domingo, 14 de junho de 2009

O Fiel jardineiro


“Love them all, but don’t trust them”, diz-me a Paula, mulher negra sul-africana, residente no Soweto. “Eles vêm do Zimbabué para trabalhar e fazer dinheiro, não para fazer amigos. São muito simpáticos, mas a vida humana não tem o mesmo valor que tem para nós, entende? À primeira oportunidade matam-lhe o seu marido e o seu filho, se for preciso, para lhe assaltarem a casa.”- disse ela com os enormes olhos brilhantes e negros abertos.
Não estava à espera de ouvir tal coisa, e depois deste comentário da Paula, comecei instintiva e inevitavelmente a olhar para o Alex, o nosso jardineiro zimbabueano com outros olhos.

À quarta-feira, faça chuva ou faça sol, lá vem ele montado na sua bicicleta cor-de-rosa, depois de pedalar durante uma hora até nossa casa.
Chega sempre às 8 horas em ponto. Fiel à pontualidade britânica, assim como ao seu gosto pelo chá, que os ingleses tão bem conseguiram incutir aos povos de todas as antigas colónias. Gosto sempre de dizer que se não fosse a nossa Catarina de Bragança, o chá das 5 nunca seria um ex-libris da cultura britânica.
A primeira coisa que lhe ofereço ao pequeno-almoço, é uma chávena de chá quente com leite e muitas colheres de açúcar. Inicialmente punha apenas duas colheres, mas depois percebi, ao ver o açúcar desaparecer cada vez que enchia o frasco, que tinha de reforçar a dose. A Mary, também ela adepta de açúcar, confessou-me que ele tinha vergonha de me pedir, mas à primeira oportunidade ia ter com ela para lhe pedir mais açúcar no chá. Nós que raramente usamos açúcar, a não ser uma ou duas colheres no café, passámos a comprar pacotes de 2 kg de açúcar que duram umas semanas.

“Hé-llo, how - are - you?” – diz o Alex, mal me vê chegar ao portão. Com um sotaque muito carregado, pronuncia todas as sílabas e as vogais muito abertas. “How is “shimani” (pequeno rapaz em sotho)?”.
Sinto-me horrivelmente culpada, mas depois do comentário da Paula, o certo é que deixei de conseguir olhar para o pobre Alex da mesma maneira. Mesmo com o seu aspecto humilde e a sua impressionante educação britânica.

Depois de lhe fazer uma tosta bem apetrechada com várias fatias de queijo e fiambre, desligo a rede eléctrica da casa, não vá o homem morrer electrocutado enquanto arranja o jardim.

Tal como herdámos a Mary, que nos limpa a casa, também herdámos o Alex, quando alugámos a casa. Já cá trabalhava há 8 anos, e foi ele, juntamente com o proprietário da casa e um grupo de zimbabuenos, que reconstruiram a vivenda, que segundo a Mary estava em muito mau estado. “Está a ver a banheira, os azulejos, o lavatório da casa de banho. Fui eu que montei isto tudo. E também pintei a casa e pus o soalho de madeira”- diz-me com um ar orgulhoso. “Conheço esta casa como a palma das minhas mãos”- diz a sorrir, mostrando-me a palma da mão branca que contrasta com a pele muito negra. “Conhece a casa como a palma das mãos, o que quer ele dizer com isto?” –penso eu, apavorada. Mais uma vez aparecem os sentimentos de suspeita e paranóia. “Será que já está a planear o crime? Se calhar consegue entrar aqui dentro por algum esconderijo secreto que ele conhece, sem nos apercebermos de nada."
Lembro-me da história de um jornalista sueco que vivia em Melville, e que nos contou uma história incrível de ladrões que assaltavam as casas, atravessando as condutas de água, que estavam ligadas ao centro da cidade. Tento disfarçar os meus pensamentos horríveis e sorrio. “Muito bem Alex. Fez um belo trabalho. Esta casa está magnífica. Deve ter demorado muito tempo...Hoje gostava que arranjasse uma infiltração que temos ali no quarto, depois de tratar do jardim, está bem?”

O Alex tem 30 anos, deixou a mulher, professora de inglês e a filha de 5 anos e está desempregado. Vive em Yeoville, um dos bairros mais perigosos da cidade, e a partir das 7 da noite fecha-se no quarto alugado e ouve tiroteios.

Actualmente, com a vaga de desemprego que afecta a África do sul, e que ultrapassa os 20%, para além dos biscates que vai fazendo aqui e ali, o único trabalho fixo que tem é vir a nossa casa uma vez por semana, arranjar o jardim, limpar a piscina e pequenos arranjos de manutenção em nossa casa.

Tento imaginar a ninharia que o sul-africano, proprietário da casa, gastou nas obras da casa quase devoluta que comprou por tuta e meia num bairro, que foi ganhando popularidade, depois do fim do apartheid, quando os brancos fugiram do centro da cidade para escapar à violência e criminalidade e se instalaram nos bairros a norte da cidade, onde actualmente só vivem brancos. Tudo isto ainda se torna mais escandaloso, se pensar na quantia exorbitante que pagamos mensalmente pela renda desta vivenda....apesar de saber que nesta cidade, só é possível viver em bairros de pessoas ricas por causa da segurança.

“O homem passa fome. Já viste como ele é magro?” – diz a minha tia que veio passar umas férias connosco. A figura esguia e seca do Alex, os olhos grandes e brilhantes parecem saltar da cara magra com ossos salientes.
Para além das refeições que toma em nossa casa, passámos a comprar-lhe sacos de arroz, carne, feijão, bolachas e barras energéticas. Não é muito, mas pelo menos sentimos que estamos a contribuir um bocadinho para garantir a sobrevivência dele.

Com receio de que aquele peso de pluma, voe da bicicleta, eu e o João enchemos-lhe o prato de comida. Mas rapidamente percebemos que, por vezes, exagerávamos e que aquelas refeições pesadas, às quais não está seguramente habituado, resultavam numa lenta digestão que o deixava num estado de letargia. O João apanhou-o por diversas vezes encostado a um banco a dormir a sesta, depois de nos entregar o prato limpo, como se tivesse sido lavado na máquina de lavar.

A minha tia fez questão de trazer-lhe imensas prendas de Lisboa. Ofereceu-lhe roupa do meu avô e do meu pai, que lhe fica a nadar, e um relógio de pulso. O homem ficou comovido e os olhos encheram-se de lágrimas. “Thanks a billion”. Os zimbabueanos têm o hábito de dizer a million ou a billion nas circustâncias mais estranhas. Já pensei se isso não terá a ver com o facto de terem a inflação mais alta do mundo, graças ao governo do Sr. Mugabe, em que um nota de um bilião de dólares não vale absolutamente nada.

“Nunca conheci pessoas como vocês” -diz ele. Fiquei a sentir-me ainda pior, com os meus sentimentos de suspeita. “Pobre Alex. Como posso ser assim?”

O pontual e fiel jardineiro volta sempre, todas as semanas, montado na sua bicicleta cor-de-rosa, com o boné do Ministério da Saúde de Portugal, vestindo o pólo azul escuro do meu pai.

1 comentário:

  1. Primimha Madalena...
    No Brasil são 16:00 h.do dia 02 de outubro. Estamos em São Paulo...Sua mana está aqui conosco matando nossa saudade com sua presença, minha neta está o tempo todo ao redor dela dizendo que ela é linda e elogiando seus cabelos. Seu filho está muito fofo. Estava lendo o que você escreveu no blog...VOcê escreve muito bem. Quando vem nos visitar? Muito beijinos da prima Mila

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