segunda-feira, 21 de setembro de 2009

De volta à escola


Paro junto à cancela e um guarda sai do cubículo de vidro. Olha para o carro, aponta num papel a matrícula e pergunta-me para onde vou. Digo-lhe que vou para o departamento de línguas. Ele dá-me um cartão e levanta a cancela.

Entro no gigantesco campus universitário da Wits, uma das maiores universidades sul-africanas, sem dúvida a maior universidade onde alguma vez estive, talvez apenas comparável à de Moscovo que visitei quando o João vivia na Rússia. À entrada painéis electrónicos divulgam informação sobre conferências, colóquios, teatros, festivais de dança que estão a decorrer na Universidade.

Chama-me a atenção aquilo a que já devia estar habituada. Todas as portas das salas dos professores têm grades, tal como grande parte das lojas em Joanesburgo. Todas as salas de aula têm um aviso pendurado na parede a informar os alunos que não se responsabilizam por nada do que lhes possa acontecer ou por algo que lhes possa ser roubado nas instalações. Há um número de telefone da segurança para onde podemos ligar se acontecer alguma coisa. Será que conseguimos ligar a alguém se nos apontarem uma arma? O espaço não é convidativo. Não estou à vontade e só me lembro dos tiroteios nas escolas americanas, em particular o tiroteio em Columbine, retratado no documentário do Michael Moore.

Enquanto aguardo o início do ano académico na África do Sul (que só começa em Janeiro. Não se esqueçam que estamos num outro hemisfério) para fazer um mestrado, decidi inscrever-me num curso avançado de inglês para melhorar o meu nível de inglês e obter um diploma.

Tenho de agradecer aos meus queridos pais, o facto de terem tido a brilhante ideia de inscreverem as filhas na escola inglesa “Elizabeth School”, e de ter tido o privilégio de aprender uma segunda língua, logo aos 3 anos de idade.

Quando tinha 9 anos, os meus pais decidiram que era uma boa ideia eu aprender mais uma língua e inscreveram-me na escola alemã de Lisboa. Julgo que foi este contacto precoce com outras línguas e com pessoas de outros países que me aguçaram, desde muito cedo, a vontade de sair do país e viver no estrangeiro. Andei a saltitar por vários países e tive a sorte de os meus pais terem apoiado estas minhas aventuras, mesmo que nem sempre tenha sido fácil ficarem longe de mim e eu deles.

A minha irmã, que seguiu o mesmo percurso, não foi viver e estudar para fora como eu, mas curiosamente trabalha como assistente de bordo da TAP e passa mais tempo no estrangeiro do que em Portugal. Na realidade os meus pais também não podiam queixar-se muito das nossas saídas constantes, porque afinal foram eles os responsáveis por nos estimularem o gosto por ambientes multiculturais.

Apesar de ter estudado inglês desde pequena numa escola britânica e de ter vivido vários anos fora de Portugal, nunca tinha feito um curso de inglês avançado. Por isso, achei que valia a pena aproveitar a oportunidade de estar num país de língua inglesa e fazer o curso uma vez por todas.

Quando fui ao departamento de línguas da Universidade Wits, vi um anúncio que dizia “Quer dar aulas de inglês em qualquer parte do mundo? Tire um curso que lhe dá um certificado de inglês internacional e dê aulas no estrangeiro”. Pensei porque não? Faço um dois em um: melhoro o meu nível de inglês, ganho o certificado exigido para tirar o mestrado e aprendo a dar aulas, algo que sempre gostei de fazer.

Fiz os exames escritos e orais para saber se o meu inglês era suficiente bom para fazer este curso e fui seleccionada. Quando cheguei à sala de aulas para ter a primeira aula, percebi que eu era a única estrangeira no curso e que os outros eram ingleses ou sul-africanos, cuja língua mãe era o inglês. Achei estranho não haver estrangeiros e pensei que talvez tivesse ido parar à turma errada. Afinal uma coisa é falar bem inglês outra coisa é ser um “native- speaker”.

Não quero fingir ser modesta. Sei que tenho um bom nível de inglês, mas tenho pronúncia e faço erros gramaticais. Decidi falar com o professor e expliquei-lhe que devia ter havido um erro. Ele insistiu que não tinha havido erro nenhum e que aquela era mesmo a minha turma. Sentia-me o elo mais fraco da turma e percebi de imediato que tinha de me esforçar mais que os outros... o que pode ser muito estimulante ou desencorajador.

Na minha primeira aula sentei-me ao lado da Kim, uma artista plástica hipocondríaca que faz duas de mim. Jurei que iria fazer tudo para não me voltar a sentar ao lado dela. A Sra não se calava por um segundo e eu tinha dificuldade em concentrar-me naquilo que o professor estava a dizer.

“Ai meu Deus estou com a vista enublada!!!” – disse a Kim ofegante. “Deve ser dos medicamentos que tomo para a tensão arterial”. Olhei para ela com uma expressão preocupada. Perguntei se precisava de alguma coisa. Se calhar quer que eu lhe dite o que está escrito no quadro, pensei. A Kim continuou: “Sabes nunca uso maquilhagem, nem tenho grandes preocupações estéticas com o meu corpo. Até por razões financeiras, estás a ver? Mas ponho sempre um creme à volta dos olhos. É algo que não abdico.Talvez seja por isso que estou a ver mal. Aliás tenho uma pele estupenda, não achas?”
“Sim de facto, tens uma pele óptima”, respondi meio atrapalhada. Não havia de facto nada mais interessante para falar do que a pele da Kim. Cada vez que tínhamos de fazer um exercício em conjunto e tínhamos de falar para o resto da turma, olhava para mim e dizia:” Fala tu Médéline.”

O raio da mulher e mais os seus problemas de saúde! Desculpem-me a insensibilidade. Mas de facto era só o que me faltava, ficar sentada ao pé desta fala-barato, para me deixar ainda mais insegura. Mais tarde percebi que a Kim já tinha chumbado no curso e que estava a repetir as aulas. Portanto, nada melhor do que “lixar” a colega de carteira estrangeira, que se sente ainda mais insegura do que ela.

Para ajudar à festa, fizemos um jogo com uns dados em que tínhamos de descrever experiências pessoais. Calhou-me o pior tópico que estava escrito no quadro: descrever em voz alta a toda a turma o momento mais embaraçoso da minha vida. Bestial, pensei. Como se tudo aquilo não fosse já suficientemente embaraçoso. Confesso-vos que já nem sei o que descrevi. O pânico tem destas coisas. Deve ter sido qualquer episódio ao estilo da Bridget Jones. Afinal, não é por acaso que a minha amiga e colega Lúcia me chama a pimentinha.

A meio da aula, apareceu uma réplica humana da Charlize Theron que deixaria os homens portugueses em estado de ebulição. Pediu desculpa pelo atraso e deixou um rasto de perfume pela sala. Além da rapariga africânder ser alta loura e muito vistosa, estava maquilhada como se fosse apresentar um desfile de moda. Só mais tarde é que me disse que era manequim e que vinha para as aulas directamente das sessões fotográficas. Portanto, imaginem o estoiro desta mulher monumental!

Num canto da sala, uma mulher de 50 e poucos anos escrevia silenciosamente no computador. É a Janine, jornalista de televisão, que recentemente ficou desempregada. Tal como a maioria dos meus colegas que estão a fazer este curso, a Janine está à espera de uma oportunidade para sair da África do sul e emigrar para um país onde possa trabalhar como Professora de inglês. Aliás, ao longo dos últimos dois meses, percebi que é por isso mesmo que todos os meus colegas, sem excepção, estão a fazer o curso TESOL (Teachers of English for Students of other Languages.

A manequim africânder quer ir para a Nova Zelândia, o cinquentão Allistair quer ir para a China, a Linda, uma londrina muito simpática, também quer aventurar-se na Ásia, a Giorgina, que já dá aulas há vários anos, quer emigrar para o Japão. Há outros que querem ir viver para a Austrália, Estados Unidos e Canadá.

Eu mudei-me para a África do Sul e eles querem fugir daqui para fora! Mas porquê? A resposta é muito simples: é cada vez mais difícil arranjarem emprego no país e o medo da criminalidade. A população branca continua a deter a maioria da riqueza do país mas receia a violência e o crime. Com mais de 50 mortes diárias, a África do sul tem uma das mais elevadas taxas de homicídio per capita em todo o mundo.
Mesmo com todos os preparativos para o primeiro campeonato mundial de futebol em África? SIM. A recessão económica e o novo governo do Presidente Jacob Zuma, que preconiza o “Black empowerment”, vieram agravar as coisas.

Ah é verdade, esqueci-me de vos dizer: Todos os meus colegas são brancos e para eles a vida na África do Sul é cada vez mais difícil. Em primeiro lugar porque o desemprego aumentou bastante com a recessão económica, em segundo lugar porque as empresas sul-africanas são obrigadas a dar prioridade aos negros, mesmo se estes não tiverem as mesmas qualificações que um candidato branco. Situação que acontece frequentemente, já que os negros neste país foram privados do acesso à educação durante décadas.

14 anos depois do final do apartheid, a África do sul continua a assistir a uma fuga maciça de cérebros e quadros superiores qualificados.

O país tem falta de engenheiros, médicos, enfermeiros e economistas. No entanto, o desemprego da população branca aumentou 100% desde o final do apartheid, e mantem-se na taxa dos 8 %. Por outro lado, o desemprego na população negra encontra-se à volta dos 50%! Os brancos entre os 20 e 35 anos são o grupo mais susceptível à emigração.O governo sul-africano não tem disponíveis estatísticas actualizadas sobre a emigração mas segundo um relatório divulgado recentemente pelo Instituto de relações raciais sul-africano, um total de 800 mil sul-africanos brancos dos 4 milhões (população branca) saíram do país desde 1995. Interessante também é ver os números relativos ao acesso ao ensino superior da população negra. Nos últimos 12 anos, o número de negros que saíram das universidades aumentou de 361.000 para 1.4 milhões por ano!

1 comentário:

  1. Sabes o que gosto quando leio as tuas crónicas? É que para além de te imaginar aqui ao meu lado a contar as tuas aventuras, farto-me, no bom sentido é claro, de aprender! Adoro-te!!! di

    ResponderEliminar